A igreja de Nossa Senhora da Paz, na praça idem, em Ipanema, anda lotando. Especialmente aos domingos.
Há um tempo atrás, além desse intenso público interno, a igreja ostentava outro, externo: uma coleção de mendigos e mendigas de todos os tipos. Cegos, aleijados (ou, deficientes visuais e deficientes físicos, como queiram), idosos lotavam a frente da igreja em busca da esmola salvadora (no duplo sentido, da mão que dá, da que recebe).
Mas a direção da igreja resolveu tomar uma medida "profilática". Não usou creolina, como certa vez sugeriu um político, mas contratou uma empresa de segurança. Agora, um guarda, devidamente uniformizado, fica em frente à igreja, controlando o (vamos chamar assim) tráfego dos mendigos. Eles podem passar pela porta, mas não podem parar ou estacionar. A não ser à saída das missas, quando controlá-los é impossível, e eles suplicam - geralmente crianças ou meninas com crianças no colo - por esmolas, que as pessoas comprem uma bala, um drops, ou pastilha de hortelã, ou auxiliem na compra de um remédio, geralmente em caligrafia quase apagada numa receita amarfanhada de um posto de saúde.
Outro dia, a igreja lotada, a missa correndo solta, o trânsito também intenso do lado de fora - pessoas, carros e ônibus - uma mulher negra, de uns 20 anos aproximadamente, sai da igreja chorando. Ela está chorando, e tem os cabelos para cima como o Grande Otelo em Macunaíma, e é magra e usa um shortinho e uma blusa mínima. Atrás dela, o guardinha (o tal contratado pela empresa de segurança, por sua vez contratada pela igreja), o guardinha vem atrás dela e bate com o cassetete nela, com força, bem nas costas, e ela grita ai, diz que a igreja é pública, e leva outro golpe, e então corre para o outro lado da rua, onde existe uma padaria.
O guarda fica em frente à igreja. E diz:
- Já falei que não quero vocês aqui na igreja.
Ela responde:
- Eu também sou filha de Deus.
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novembro 28, 2006
novembro 22, 2006
Broto - uma história de adolescentes
A enfermeira falou Não pode comer nada. Nem o café da manhã? O café pode. Mas, depois, nada.
E assim estava Ciça. Só o café da manhã e um frio doido no estômago. Três horas da tarde e a gente indo ao médico fazer o aborto.
Chegando lá, os dois nervosos, a porta abrindo faz blim-blim. Entramos. Na sala, umas cinco mulheres, só uma com o namorado. A recepcionista pergunta o nome. Ciça diz Maria Cecília.
A recepcionista diz Pode aguardar um momentinho, o doutor já vai atender.
Uma tremenda tensão. Eu e Ciça nos sentamos. Parece haver um pacto no ar: ninguém se olha. Observo que nenhuma daquelas mulheres ali tem cara de mãe. Mesmo as que acompanham. Parecem tias. Amigas da mãe, que fazem um favor e acompanham a ex-futura-mamãe, ou melhor, a futura ex-mamãe.
Pra distrair, a sala tem várias cumbucas de cristal, todas cheinhas até a boca de bombons. Penso em encher a bolsa de Ciça com eles (ela adora chocolates). Mas acho melhor não. Não quero sair com nada dali.
Ciça me abraça com força. O coração da gente cabe numa casca de arroz. No entanto, como todas as outras pessoas ali (menos a recepcionista a todo instante no telefone) não falamos nada.
A enfermeira chamou Solange. E uma menina se levantou. Devia ter quinze. Talvez dezesseis, como Ciça. Ela estava sozinha, se levantou e foi com a enfermeira por uma outra porta.
A porta de entrada fez blim-blim e entrou uma nova menina na sala. Os olhos dela muito vermelhos, de quem havia chorado muito. O namorado, ao lado, segurava os ombros dela como se fossem bolhas de sabão. Pela cara, ela devia ter quinze anos, no máximo.
E logo chegou mais gente. E mais gente se foi. De vez em quando alguém chorava. Mas baixo. Como eu disse, havia um pacto.
Pensei comigo Se aqui, no Leblon, zona sul do Rio, consultório particular, o clima é esse...
A enfermeira falou Maria Cecília. A mão dela apertou a minha, com força.
Nós entramos.
A enfermeira falou Por aqui, apontando uma porta no fundo do corredor.
E chegamos ao consultório. O médico, sentado, sorriu.
Pensei que fosse fazer propaganda do escudo invisível de Signal. Ou do novo Omo que deixa o branco ainda mais branco. Quase.
Só delicadezas, mandou que a gente se sentasse, ficasse à vontade. Como se isso fosse possível.
Olhei a cara dele.
Então ele falou que a gente não devia se preocupar, que o método dele era eficientíssimo.
Manjei a pinta. Se não fosse médico, vendia carnê do Baú do Sílvio Santos.
E fez a comparação. Existe o método moderno (o dele) e o da raspagem (dos outros), "antigo e ultrapassado". A raspagem, ainda segundo ele, era um método perigoso, podia haver perfuração do útero - e Ciça ouvindo aquilo tudo, mordendo os lábios.
A diferença entre o método dele e o da raspagem ele explicou assim: é a mesma que existe entre se tirar a sujeira do tapete com uma vassoura ou um aspirador de pó.
Tive vontade de dizer que a diferença não estava no aspirador nem na vassoura, mas naquilo que ele chamava de sujeira. Falei só que o que eu queria era que tudo corresse bem.
Ele disse pra eu ficar calmo e pra Ciça ir ao banheiro - que ele apontou com a mão branca, de dedos curtos - pra ela ir ao banheiro, tirar toda a roupa e pôr o camisolão branco que estava lá.
Ciça saiu, um beijinho rápido em mim, e a mão molhadinha de suor - ela que tinha medo até de dentista.
Olhei pra cara do médico e ele disse Não se preocupe, não demora. E saiu.
A sala dele era fria, um ar condicionado forte.
Fiquei ali naquele silêncio, um tempo que parecia interminável.
Até que a enfermeira, que até aquele momento havia sido absolutamente gentil e tranqüila, surgiu, nervosíssima, falando Já acabou, venha comigo, ela está lá fora.
Sigo nervoso, em direção à porta que ela me aponta. No corredor do prédio vejo minha Ciça, encostada na parede, meio curvada, chorando desesperadamente, resmungando Nosso neném, Nosso neném! Eu a abraço.
A enfermeira diz Tem que fazer ela parar de chorar e gritar assim, isso aqui é um prédio! E fecha a porta.
Ficamos nós dois no corredor. A enfermeira quer silêncio. Penso no médico, em seu método moderno para eliminar sujeira de tapete. E percebo que, agora, o que esperam de nós é que tenhamos bom senso, não toquemos no assunto. Devemos fazer silêncio e varrer a sujeira pra baixo do tapete.
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E assim estava Ciça. Só o café da manhã e um frio doido no estômago. Três horas da tarde e a gente indo ao médico fazer o aborto.
Chegando lá, os dois nervosos, a porta abrindo faz blim-blim. Entramos. Na sala, umas cinco mulheres, só uma com o namorado. A recepcionista pergunta o nome. Ciça diz Maria Cecília.
A recepcionista diz Pode aguardar um momentinho, o doutor já vai atender.
Uma tremenda tensão. Eu e Ciça nos sentamos. Parece haver um pacto no ar: ninguém se olha. Observo que nenhuma daquelas mulheres ali tem cara de mãe. Mesmo as que acompanham. Parecem tias. Amigas da mãe, que fazem um favor e acompanham a ex-futura-mamãe, ou melhor, a futura ex-mamãe.
Pra distrair, a sala tem várias cumbucas de cristal, todas cheinhas até a boca de bombons. Penso em encher a bolsa de Ciça com eles (ela adora chocolates). Mas acho melhor não. Não quero sair com nada dali.
Ciça me abraça com força. O coração da gente cabe numa casca de arroz. No entanto, como todas as outras pessoas ali (menos a recepcionista a todo instante no telefone) não falamos nada.
A enfermeira chamou Solange. E uma menina se levantou. Devia ter quinze. Talvez dezesseis, como Ciça. Ela estava sozinha, se levantou e foi com a enfermeira por uma outra porta.
A porta de entrada fez blim-blim e entrou uma nova menina na sala. Os olhos dela muito vermelhos, de quem havia chorado muito. O namorado, ao lado, segurava os ombros dela como se fossem bolhas de sabão. Pela cara, ela devia ter quinze anos, no máximo.
E logo chegou mais gente. E mais gente se foi. De vez em quando alguém chorava. Mas baixo. Como eu disse, havia um pacto.
Pensei comigo Se aqui, no Leblon, zona sul do Rio, consultório particular, o clima é esse...
A enfermeira falou Maria Cecília. A mão dela apertou a minha, com força.
Nós entramos.
A enfermeira falou Por aqui, apontando uma porta no fundo do corredor.
E chegamos ao consultório. O médico, sentado, sorriu.
Pensei que fosse fazer propaganda do escudo invisível de Signal. Ou do novo Omo que deixa o branco ainda mais branco. Quase.
Só delicadezas, mandou que a gente se sentasse, ficasse à vontade. Como se isso fosse possível.
Olhei a cara dele.
Então ele falou que a gente não devia se preocupar, que o método dele era eficientíssimo.
Manjei a pinta. Se não fosse médico, vendia carnê do Baú do Sílvio Santos.
E fez a comparação. Existe o método moderno (o dele) e o da raspagem (dos outros), "antigo e ultrapassado". A raspagem, ainda segundo ele, era um método perigoso, podia haver perfuração do útero - e Ciça ouvindo aquilo tudo, mordendo os lábios.
A diferença entre o método dele e o da raspagem ele explicou assim: é a mesma que existe entre se tirar a sujeira do tapete com uma vassoura ou um aspirador de pó.
Tive vontade de dizer que a diferença não estava no aspirador nem na vassoura, mas naquilo que ele chamava de sujeira. Falei só que o que eu queria era que tudo corresse bem.
Ele disse pra eu ficar calmo e pra Ciça ir ao banheiro - que ele apontou com a mão branca, de dedos curtos - pra ela ir ao banheiro, tirar toda a roupa e pôr o camisolão branco que estava lá.
Ciça saiu, um beijinho rápido em mim, e a mão molhadinha de suor - ela que tinha medo até de dentista.
Olhei pra cara do médico e ele disse Não se preocupe, não demora. E saiu.
A sala dele era fria, um ar condicionado forte.
Fiquei ali naquele silêncio, um tempo que parecia interminável.
Até que a enfermeira, que até aquele momento havia sido absolutamente gentil e tranqüila, surgiu, nervosíssima, falando Já acabou, venha comigo, ela está lá fora.
Sigo nervoso, em direção à porta que ela me aponta. No corredor do prédio vejo minha Ciça, encostada na parede, meio curvada, chorando desesperadamente, resmungando Nosso neném, Nosso neném! Eu a abraço.
A enfermeira diz Tem que fazer ela parar de chorar e gritar assim, isso aqui é um prédio! E fecha a porta.
Ficamos nós dois no corredor. A enfermeira quer silêncio. Penso no médico, em seu método moderno para eliminar sujeira de tapete. E percebo que, agora, o que esperam de nós é que tenhamos bom senso, não toquemos no assunto. Devemos fazer silêncio e varrer a sujeira pra baixo do tapete.
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novembro 20, 2006
Aviso aos Navegantes
Não teria sentido criar um blog, apenas para publicar meus trabalhos. Quer dizer, até teria - mas aí não seria um blog. Porque um blog pressupõe comentários, troca de idéias, e é exatamente o que pretendo aqui neste espaço - além, é claro, de mostrar a vocês um pouco do meu trabalho também.
Conto com a sua colaboração, indicando blogs ou sites com trabalhos e discussões interessantes sobre a temática do blog. Começo indicando um site imperdível, do escritor e professor de pós-graduação em Literatura da Uerj Gustavo Bernardo, Dubito Ergo Sum.
Em seu site, Gustavo explora as relações entre literatura e ceticismo, publica grande parte de seus artigos e resenhas, além de inúmeros contos selecionados por ele. Visitem, e comentem.
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novembro 12, 2006
Motorista com dor de cabeça
Noite. Motorista do ônibus 433 segue do Leblon em direção a Vila Isabel. Passa por Ipanema, Copacabana.
A viagem corre tranqüila, normal, segundo os quase 50 passageiros.
Em frente ao shopping Rio Sul, o ônibus pára. O motorista pede ao fiscal para não prosseguir viagem. Alega muita dor de cabeça. Dor na cabeça.Não no pé, nem na mão, nas costas, na bunda que mantém sentada no banco. A dor é na cabeça.
Mas o fiscal manda que ele siga viagem.
Transtornado, ele dá a partida e sai atropelando os carros que estão à sua frente. Só pára 300 metros adiante, na esquina da Avenida Pasteur. Desce do ônibus e joga o extintor de incêndio nas costas de um guarda.
Está enfurecido, dá trabalho, mas finalmente é imobilizado.
Ele alega que a culpa é do fiscal, que não o deixou abandonar a viagem. Muita dor de cabeça.
Para ele, o fiscal não pegou o Espírito da Coisa.
A multidão tenta linchá-lo, mas é impedida.
Ele é levado a um hospital e depois liberado, pois não houve vítimas, apenas danos materiais.
Não houve vítimas. Segundo um sargento da PM não houve vítimas.
Liberado, o motorista não precisou seguir viagem.
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A viagem corre tranqüila, normal, segundo os quase 50 passageiros.
Em frente ao shopping Rio Sul, o ônibus pára. O motorista pede ao fiscal para não prosseguir viagem. Alega muita dor de cabeça. Dor na cabeça.Não no pé, nem na mão, nas costas, na bunda que mantém sentada no banco. A dor é na cabeça.
Mas o fiscal manda que ele siga viagem.
Transtornado, ele dá a partida e sai atropelando os carros que estão à sua frente. Só pára 300 metros adiante, na esquina da Avenida Pasteur. Desce do ônibus e joga o extintor de incêndio nas costas de um guarda.
Está enfurecido, dá trabalho, mas finalmente é imobilizado.
Ele alega que a culpa é do fiscal, que não o deixou abandonar a viagem. Muita dor de cabeça.
Para ele, o fiscal não pegou o Espírito da Coisa.
A multidão tenta linchá-lo, mas é impedida.
Ele é levado a um hospital e depois liberado, pois não houve vítimas, apenas danos materiais.
Não houve vítimas. Segundo um sargento da PM não houve vítimas.
Liberado, o motorista não precisou seguir viagem.
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Relato
Primeiro, a necessidade de um salto rápido, quase um bote, depois da corrida louca, para detê-lo pela camisa, puxá-lo; depois, foi como um impulso, seta do desejo: a mão num soco, fechada como a frente de um Scania, bem no fígado, puf, seco, e, então, o outro se curva, quase uma cadeira, a boca, de dentes podres, abre-se, a língua tremendo num grito pavoroso, os olhos arregalados amarelecendo no rosto negro.
Em direção aos dois, uma pessoa atravessa a rua, uma pessoa quase gato, tão ágil ela. Outras, outro lado da rua, olham apenas; isso, é fácil prever, é por enquanto.
O ódio continua surdo, e ele, agora, aplica, mãos espalmadas, plaft, um telefone-sem-fio no outro; o menino cai, mãozinhas no ouvido, um milhão de abelhas na cabeça zumbindo, lágrimas dos olhos escorrendo, quase um feto no chão, retorcido. O homem chuta a cara do menino, cract; sangue e alguns dentes que, podres, quebraram tão fácil, saltam pela boca, quase de velho agora: murcha.
Outras pessoas cercam os dois, olham: espanto. Sobre suas cabeças: prédios e um céu azul, daqueles de se dizer diáfano, transparente, translúcido. Alguns comentam que eram dois os pivetes, e do morro do Pavãozinho, na certa, ou de muito longe, da Baixada, se tudo é incerto; mas dois, que um fugiu, "menorzinho ainda e já ladrão, deve estar por aí"; certo é que eram dois, pretendiam a bolsa de uma senhora, mas ela protestou, gritou, o homem viu, e o resto é o que estamos, impassíveis, presenciando.
O homem pega a impressão de feto pelas pernas, segura-as bem, e, por elas, levanta-a. O menino de cabeça para baixo, o que o homem pretende?
Um rapaz puxa a namorada, vamos embora daqui, ele diz, já vi esse filme. Ela pergunta qual o filme. Os dois afastam-se do grupo, que, de ciranda em ciranda, aumenta; afastam-se mais, atravessam a rua e, pouco adiante, a menina saltando no ombro do namorado, param - com certeza, o filme ele contou a ela.
O homem, zum-zum, começa, mãos nos pés do menino, a girá-lo. Tão forte é o homem, o menino parece uma ausência súbita, sombra apenas, que roda por cima da cabeça do homem. Este começa a caminhar, ainda zum-zum, e o grupo abre, o grupo num burburinho, dando passagem ao homem-helicóptero, uma pergunta animando a cabeça de todos: o que pretende?
Como o Átila do filme de Bertolucci, 1900, o homem, ainda, e sempre, girando o menino, bate, prac, com a cabeça dele num poste, onde, numa placa, lê-se ATENÇÃO ESCOLA DEVAGAR; e, prac, girando, bate outra vez, sangue e miolos espirrando - não em ninguém, que todos estão afastados, apenas olhando - prac, e prac, e prac. O homem, assim, cansa-se, ufa, e solta o ex-menino no chão de sempre.
O grupo, cirandando, renova-se, uns que vão, são outros que vêm: a cara de espanto quando vêem o ex-corpo; então, conversa de olhos curiosos, pequenas exclamações, dúvidas, ais.
A cinco quarteirões dali, o menorzinho, que conseguiu fugir, limpa, na camisa suja, uma pêra, lindo vê-la, apanhada pouquinho atrás num vacilo do comércio, e morde-a, uma delícia sob o céu azul, tantos prédios. Depois, o menino anda, um pé na frente do outro, sempre trocando, um e outro, assim, um pé na frente do outro. Um na frente do outro.
(Este pequeno Relato faz parte de meu livro de contos A Metáfora de Drácula, lançado pela Livraria José Olympio Editora, em 1982. O livro está esgotado e publicarei outros contos por aqui)
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Em direção aos dois, uma pessoa atravessa a rua, uma pessoa quase gato, tão ágil ela. Outras, outro lado da rua, olham apenas; isso, é fácil prever, é por enquanto.
O ódio continua surdo, e ele, agora, aplica, mãos espalmadas, plaft, um telefone-sem-fio no outro; o menino cai, mãozinhas no ouvido, um milhão de abelhas na cabeça zumbindo, lágrimas dos olhos escorrendo, quase um feto no chão, retorcido. O homem chuta a cara do menino, cract; sangue e alguns dentes que, podres, quebraram tão fácil, saltam pela boca, quase de velho agora: murcha.
Outras pessoas cercam os dois, olham: espanto. Sobre suas cabeças: prédios e um céu azul, daqueles de se dizer diáfano, transparente, translúcido. Alguns comentam que eram dois os pivetes, e do morro do Pavãozinho, na certa, ou de muito longe, da Baixada, se tudo é incerto; mas dois, que um fugiu, "menorzinho ainda e já ladrão, deve estar por aí"; certo é que eram dois, pretendiam a bolsa de uma senhora, mas ela protestou, gritou, o homem viu, e o resto é o que estamos, impassíveis, presenciando.
O homem pega a impressão de feto pelas pernas, segura-as bem, e, por elas, levanta-a. O menino de cabeça para baixo, o que o homem pretende?
Um rapaz puxa a namorada, vamos embora daqui, ele diz, já vi esse filme. Ela pergunta qual o filme. Os dois afastam-se do grupo, que, de ciranda em ciranda, aumenta; afastam-se mais, atravessam a rua e, pouco adiante, a menina saltando no ombro do namorado, param - com certeza, o filme ele contou a ela.
O homem, zum-zum, começa, mãos nos pés do menino, a girá-lo. Tão forte é o homem, o menino parece uma ausência súbita, sombra apenas, que roda por cima da cabeça do homem. Este começa a caminhar, ainda zum-zum, e o grupo abre, o grupo num burburinho, dando passagem ao homem-helicóptero, uma pergunta animando a cabeça de todos: o que pretende?
Como o Átila do filme de Bertolucci, 1900, o homem, ainda, e sempre, girando o menino, bate, prac, com a cabeça dele num poste, onde, numa placa, lê-se ATENÇÃO ESCOLA DEVAGAR; e, prac, girando, bate outra vez, sangue e miolos espirrando - não em ninguém, que todos estão afastados, apenas olhando - prac, e prac, e prac. O homem, assim, cansa-se, ufa, e solta o ex-menino no chão de sempre.
O grupo, cirandando, renova-se, uns que vão, são outros que vêm: a cara de espanto quando vêem o ex-corpo; então, conversa de olhos curiosos, pequenas exclamações, dúvidas, ais.
A cinco quarteirões dali, o menorzinho, que conseguiu fugir, limpa, na camisa suja, uma pêra, lindo vê-la, apanhada pouquinho atrás num vacilo do comércio, e morde-a, uma delícia sob o céu azul, tantos prédios. Depois, o menino anda, um pé na frente do outro, sempre trocando, um e outro, assim, um pé na frente do outro. Um na frente do outro.
(Este pequeno Relato faz parte de meu livro de contos A Metáfora de Drácula, lançado pela Livraria José Olympio Editora, em 1982. O livro está esgotado e publicarei outros contos por aqui)
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