janeiro 31, 2009

Nova briga sobre caso Cesare

novidade4s no front?

fevereiro 12, 2007

Entrevista com Paul Auster: ‘Esse país (EUA) fez muitas coisas terríveis para outras pessoas’

Em “Desvarios no Brooklyn” o senhor critica o governo Bush. É possível dizer que a história sobre a Confederação, presente em “Viagens...” também é uma crítica?

AUSTER: Não sei se é sobre Bush, mas sei que é sobre a história da América. Temos uma longa história. Esse país fez muitas coisas terríveis para outras pessoas. Nós praticamente destruímos a população nativa do território. Nós tivemos escravidão. São coisas das quais não devemos nos orgulhar. Ao mesmo tempo, porém, a América foi e ainda é, de certa forma, a nação que mais progrediu nos últimos séculos em diversos aspectos. Só que, nos últimos seis anos, com o governo republicano de Bush, pegamos outro caminho. E me parece muito difícil voltarmos atrás.

O senhor acha que os escritores têm a obrigação de participar da discussão política?

AUSTER: Um livro tem, em algumas situações, o poder de influenciar as pessoas. Mas na maioria das vezes não tem poder algum. Os escritores devem ser livres para fazerem o que quiserem. É disso que se trata a democracia. Não acho que a arte tenha que ser completamente ligada à política. Seria uma forma de arte muito enfadonha. Porém, isso não significa que cidadãos, individualmente, não tenham o direito, ou até mesmo a obrigação, de se expressarem.

Entrevista concedida a André Miranda, O Globo.

Entrevista com Paul Auster: ‘Elas (as pessoas) estão muito assustadas e confusas com o mundo moderno’

E como é viver nos Estados Unidos, com a onda do criacionismo e todas essas outras teorias religiosas?

AUSTER: É muito bizarro. A América foi fundada como um país secular. Era uma das bases do governo, era parte da constituição sobre a qual o país foi construído. Só que, agora, estamos num momento em que a religião ganhou mais importância na sociedade. Mas isso já ocorreu antes. É uma onda que vai e volta. Já foi muito forte nos primórdios do país, na Nova Inglaterra, no século XVII. Voltou nos anos 1840, com um grande revival religioso. O que estamos experimentando hoje é somente uma nova onda.

E por que as pessoas estão aderindo a essa onda?

AUSTER: Acho que elas estão com medo. Elas estão muito assustadas e confusas com o mundo moderno. Não estou falando de guerras ou terrorismo. Estou falando de capitalismo, consumismo. Estamos cercados por imagens, sons, sexo... coisas que confundem as pessoas. O que elas têm feito é se agarrar a idéias simples e fortes para organizar suas vidas. Não estou dizendo que estou de acordo que se faça isso, mas sinceramente entendo o porquê de as pessoas se apegarem às teorias religiosas.

Entrevista concedida a André Miranda, O Globo.

Entrevista com Paul Auster: ‘O autor, depois de alguns anos, deixa de existir. Os personagens, não.’

Durante a elaboração de um livro, seus personagens também parecem vivos? Eles buscam caminhos diferentes do traçado pelo senhor?

AUSTER: Sim, eles me surpreendem o tempo todo. Quanto mais eu os conheço, mais inesperadamente eles agem. O grande paradoxo é que um escritor é uma pessoa real. Ele vai ficando cada vez mais velho e, em algum momento, morre. O autor, depois de alguns anos, deixa de existir. Os personagens, não. Eles, que não existiam num primeiro momento, acabam vivendo além do escritor.

Homens de meia-idade, escritores, nova-iorquinos... A impressão que fica é que sempre há um pouco do senhor em seus personagens. O escritor sempre está dentro de seus personagens?

AUSTER: Eu sei que as pessoas lêem meus romances e acham que há semelhanças com a minha vida. O estranho, porém, é que meus livros de ficção não são nem um pouco autobiográficos. Eu já escrevi memórias, livros sobre fatos da minha vida. Mas meus romances são completamente imaginários. Todo mundo lá é imaginário. Muito pouco é baseado em fatos e pessoas que eu vivi ou conheci. Muito pouco é baseado em experiências próprias.

Em seus livros, é o acaso que guia os acontecimentos. Houve muitas coincidências em sua vida que o levaram até esse ponto da carreira?

AUSTER: Tudo parece ser um acidente. Em “The red notebook” (“O caderno vermelho”, inédito no Brasil) estão muitas histórias reais sobre fatos estranhos pelos quais eu próprio passei. A vida é muito imprevisível e posso dizer que coisas estranhas acontecem constantemente. O que faço é tentar transpor isso para minha ficção. Tento ser o mais honesto possível com a forma como enxergo o mundo.

Não é necessário dizer, então, que o senhor não acredita em destino...

AUSTER: Não, eu realmente não acredito em destino. Cada minuto de nossas vidas está aberto a questionamentos. As coisas podem mudar num instante e não conheceremos nossa história completamente até estarmos mortos. Não temos como dizer o que faremos ou onde estaremos no dia seguinte.

Entrevista concedida a André Miranda, O Globo.

Entrevista com Paul Auster: ‘Para mim, meus personagens são pessoas reais’

Primeiramente, parabéns pelo aniversário. E como é chegar aos 60?

PAUL AUSTER: Obrigado. Eu não sei bem. Acontece muito rápido. Parece que foram apenas 20 anos. É muito estranho. O tempo está acelerando.

É por isso que seus últimos protagonistas — Blank, de “Viagens no Scriptorium”, e Nathan Glass, de “Desvarios no Brooklyn” — também são mais velhos do que os protagonistas habituais?

AUSTER: Talvez seja porque estou começando a entender mais sobre esse período da vida. Você não consegue entender até chegar lá. As coisas mudam. Para mim, a idade mágica é os 50. Tudo começa a mudar aos 50. Seu corpo começa a quebrar ou falhar aos poucos, você não é forte e saudável como era. E uma coisa ainda mais importante do que isso é que muitas das pessoas que você amou ou com as quais se preocupou durante sua vida estão mortas. Você começa a caminhar por aí com vários fantasmas ao seu lado. Você começa a conversar com pessoas que não estão mais lá, quase tanto quanto com pessoas que ainda estão vivas. É uma experiência muito estranha.

Então é um sinal da idade que “Viagens...” faça referências a personagens de praticamente todos os seus livros anteriores?

AUSTER: Talvez sim. Para mim, meus personagens são pessoas reais. Sempre foram pessoas reais. Sei que soa estranho, mas eu acredito neles da mesma forma que acredito em alguém feito de carne, sangue e ossos. Eles vivem na minha cabeça. Até mesmo personagens sobre os quais eu escrevi há 20 anos, ainda penso muito neles. Volta e meia eles voltam à minha imaginação e, de certa forma, dialogam comigo.

Entrevista concedida a André Miranda, O Globo.

dezembro 22, 2006

"Nós" vence "You" na revista Time

Diferentemente da revista Time, que elegeu You (Você) como a personalidade do ano, para o Blog do Mello o destaque do ano na nossa parodística e inverossímil (pois dela só existe a capa) revista Time (não a palavra inglesa, mas a portuguesa que significa equipe) foi "Nós". Não só o pronome, mas também o substantivo plural, no sentido de união, vínculo, laço, exatamente o que forma e traduz a grande rede WWW.

Não vou ficar aqui exaltando a importância desse(s) "Nós", não só porque ela já foi devidamente festejada com a premiação da Time original, mas também porque como, evidentemente, estou incluído nesse(s) "Nós", seria cabotinismo.

Gostaria de agradecer a companhia dos que visitaram regularmente este blog durante o ano, incluídos aqui os "indignados úteis" - aos quais, mais uma vez, aproveito e aconselho a leitura de um conto de Kafka, chamado Uma Mulherzinha -; agradecer também aos leitores esporádicos e, especialmente, aos que deixam seus comentários e tornam a tarefa de blogueiro possível.

Como já fiz no ano anterior, peço a todos os que me linkam em seus blogs ou páginas pessoais que me informem seus endereços para que eu possa retribuir a indicação aqui no meu blog, reforçando ainda mais o(s) "Nós" da rede.

Um grande abraço, Feliz Natal e um 2007 melhor para todos "Nós".
Antônio Mello

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dezembro 07, 2006

Dicas de sites para quem gosta de Literatura

Alguns sites recomendados pelo professor e escritor Gustavo Bernardo. Gustavo é professor de Teoria da Literatura na UERJ e autor de vários ensaios e romances. Entre eles, o ensaio A Dúvida de Flusser, Prêmio Jabuti em 2003, A Alma do Urso, considerado “O Melhor para o Jovem” em 2000, e Lúcia, indicado para o Jabuti naquele ano. Os comentários são dele.

. Adriana Lisboa:
http://www.adrianalisboa.com.br/
Comentário: site da escritora carioca, com alguns de seus textos e resenhas sobre os seus principais livros, como Sinfonia em branco, Um beijo de colombina e Caligrafias.

. Flávio Carneiro:
http://www.flaviocarneiro.com.br/
Comentário: site do escritor e professor carioca, com alguns de seus textos e resenhas sobre os seus principais livros, como O campeonato, No país do presente e A confissão.

. Machado de Assis:
http://www.machadodeassis.org.br/
Comentário: o melhor site do escritor Machado de Assis, não por acaso mantido pela Academia Brasileira de Letras, contendo desde as obras digitalizadas até a organização da extensíssima fortuna crítica do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

. E-dicionário de termos literários:
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/
Comentário: o melhor dicionário on-line de termos literários, ainda em processo de construção, coordenado pelo professor Carlos Ceia, da Universidade Nova de Lisboa.

. Concursos literários:
http://www.concursosliterarios.com.br/
Comentário: o site mais organizado sobre os concursos literários do país e do exterior.

. Revista Flusser Studies:
http://www.flusserstudies.net/index.htm
Comentário: revista on line sobre a obra do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, editada pelo professor suíço Rainer Guldin e contendo ensaios em inglês, alemão, português e... em tcheco.

. Estante Virtual – sebos de todo o país:
http://www.estantevirtual.com.br/inicio.htm
Comentário: "reunindo virtualmente os acervos de 348 sebos e livreiros, de 89 cidades, a Estante Virtual é a sua chance de encontrar sempre o livro que você procura. E por um preço que você pode pagar! Chega de bater pernas atrás de livros que você nunca acha, chega de levar para casa um livro que não era exatamente aquele que você queria. E não é só! Todos os leitores cadastrados têm à disposição sua própria estante virtual, para vender livros do seu acervo pessoal para uma comunidade com mais de 10 mil leitores de todo o Brasil e de diversos outros países".

(Envie também suas dicas de sites para compartilhá-las com os leitores)

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novembro 28, 2006

Situação crônica: Aconteceu na igreja Nossa Senhora da Paz

A igreja de Nossa Senhora da Paz, na praça idem, em Ipanema, anda lotando. Especialmente aos domingos.

Há um tempo atrás, além desse intenso público interno, a igreja ostentava outro, externo: uma coleção de mendigos e mendigas de todos os tipos. Cegos, aleijados (ou, deficientes visuais e deficientes físicos, como queiram), idosos lotavam a frente da igreja em busca da esmola salvadora (no duplo sentido, da mão que dá, da que recebe).

Mas a direção da igreja resolveu tomar uma medida "profilática". Não usou creolina, como certa vez sugeriu um político, mas contratou uma empresa de segurança. Agora, um guarda, devidamente uniformizado, fica em frente à igreja, controlando o (vamos chamar assim) tráfego dos mendigos. Eles podem passar pela porta, mas não podem parar ou estacionar. A não ser à saída das missas, quando controlá-los é impossível, e eles suplicam - geralmente crianças ou meninas com crianças no colo - por esmolas, que as pessoas comprem uma bala, um drops, ou pastilha de hortelã, ou auxiliem na compra de um remédio, geralmente em caligrafia quase apagada numa receita amarfanhada de um posto de saúde.

Outro dia, a igreja lotada, a missa correndo solta, o trânsito também intenso do lado de fora - pessoas, carros e ônibus - uma mulher negra, de uns 20 anos aproximadamente, sai da igreja chorando. Ela está chorando, e tem os cabelos para cima como o Grande Otelo em Macunaíma, e é magra e usa um shortinho e uma blusa mínima. Atrás dela, o guardinha (o tal contratado pela empresa de segurança, por sua vez contratada pela igreja), o guardinha vem atrás dela e bate com o cassetete nela, com força, bem nas costas, e ela grita ai, diz que a igreja é pública, e leva outro golpe, e então corre para o outro lado da rua, onde existe uma padaria.

O guarda fica em frente à igreja. E diz:
- Já falei que não quero vocês aqui na igreja.
Ela responde:
- Eu também sou filha de Deus.

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novembro 22, 2006

Broto - uma história de adolescentes

A enfermeira falou Não pode comer nada. Nem o café da manhã? O café pode. Mas, depois, nada.

E assim estava Ciça. Só o café da manhã e um frio doido no estômago. Três horas da tarde e a gente indo ao médico fazer o aborto.

Chegando lá, os dois nervosos, a porta abrindo faz blim-blim. Entramos. Na sala, umas cinco mulheres, só uma com o namorado. A recepcionista pergunta o nome. Ciça diz Maria Cecília.

A recepcionista diz Pode aguardar um momentinho, o doutor já vai atender.

Uma tremenda tensão. Eu e Ciça nos sentamos. Parece haver um pacto no ar: ninguém se olha. Observo que nenhuma daquelas mulheres ali tem cara de mãe. Mesmo as que acompanham. Parecem tias. Amigas da mãe, que fazem um favor e acompanham a ex-futura-mamãe, ou melhor, a futura ex-mamãe.

Pra distrair, a sala tem várias cumbucas de cristal, todas cheinhas até a boca de bombons. Penso em encher a bolsa de Ciça com eles (ela adora chocolates). Mas acho melhor não. Não quero sair com nada dali.

Ciça me abraça com força. O coração da gente cabe numa casca de arroz. No entanto, como todas as outras pessoas ali (menos a recepcionista a todo instante no telefone) não falamos nada.

A enfermeira chamou Solange. E uma menina se levantou. Devia ter quinze. Talvez dezesseis, como Ciça. Ela estava sozinha, se levantou e foi com a enfermeira por uma outra porta.

A porta de entrada fez blim-blim e entrou uma nova menina na sala. Os olhos dela muito vermelhos, de quem havia chorado muito. O namorado, ao lado, segurava os ombros dela como se fossem bolhas de sabão. Pela cara, ela devia ter quinze anos, no máximo.

E logo chegou mais gente. E mais gente se foi. De vez em quando alguém chorava. Mas baixo. Como eu disse, havia um pacto.

Pensei comigo Se aqui, no Leblon, zona sul do Rio, consultório particular, o clima é esse...

A enfermeira falou Maria Cecília. A mão dela apertou a minha, com força.

Nós entramos.

A enfermeira falou Por aqui, apontando uma porta no fundo do corredor.

E chegamos ao consultório. O médico, sentado, sorriu.

Pensei que fosse fazer propaganda do escudo invisível de Signal. Ou do novo Omo que deixa o branco ainda mais branco. Quase.

Só delicadezas, mandou que a gente se sentasse, ficasse à vontade. Como se isso fosse possível.

Olhei a cara dele.

Então ele falou que a gente não devia se preocupar, que o método dele era eficientíssimo.

Manjei a pinta. Se não fosse médico, vendia carnê do Baú do Sílvio Santos.

E fez a comparação. Existe o método moderno (o dele) e o da raspagem (dos outros), "antigo e ultrapassado". A raspagem, ainda segundo ele, era um método perigoso, podia haver perfuração do útero - e Ciça ouvindo aquilo tudo, mordendo os lábios.

A diferença entre o método dele e o da raspagem ele explicou assim: é a mesma que existe entre se tirar a sujeira do tapete com uma vassoura ou um aspirador de pó.

Tive vontade de dizer que a diferença não estava no aspirador nem na vassoura, mas naquilo que ele chamava de sujeira. Falei só que o que eu queria era que tudo corresse bem.

Ele disse pra eu ficar calmo e pra Ciça ir ao banheiro - que ele apontou com a mão branca, de dedos curtos - pra ela ir ao banheiro, tirar toda a roupa e pôr o camisolão branco que estava lá.

Ciça saiu, um beijinho rápido em mim, e a mão molhadinha de suor - ela que tinha medo até de dentista.

Olhei pra cara do médico e ele disse Não se preocupe, não demora. E saiu.

A sala dele era fria, um ar condicionado forte.

Fiquei ali naquele silêncio, um tempo que parecia interminável.

Até que a enfermeira, que até aquele momento havia sido absolutamente gentil e tranqüila, surgiu, nervosíssima, falando Já acabou, venha comigo, ela está lá fora.

Sigo nervoso, em direção à porta que ela me aponta. No corredor do prédio vejo minha Ciça, encostada na parede, meio curvada, chorando desesperadamente, resmungando Nosso neném, Nosso neném! Eu a abraço.

A enfermeira diz Tem que fazer ela parar de chorar e gritar assim, isso aqui é um prédio! E fecha a porta.

Ficamos nós dois no corredor. A enfermeira quer silêncio. Penso no médico, em seu método moderno para eliminar sujeira de tapete. E percebo que, agora, o que esperam de nós é que tenhamos bom senso, não toquemos no assunto. Devemos fazer silêncio e varrer a sujeira pra baixo do tapete.

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novembro 20, 2006

Aviso aos Navegantes

Não teria sentido criar um blog, apenas para publicar meus trabalhos. Quer dizer, até teria - mas aí não seria um blog. Porque um blog pressupõe comentários, troca de idéias, e é exatamente o que pretendo aqui neste espaço - além, é claro, de mostrar a vocês um pouco do meu trabalho também.

Conto com a sua colaboração, indicando blogs ou sites com trabalhos e discussões interessantes sobre a temática do blog. Começo indicando um site imperdível, do escritor e professor de pós-graduação em Literatura da Uerj Gustavo Bernardo, Dubito Ergo Sum.

Em seu site, Gustavo explora as relações entre literatura e ceticismo, publica grande parte de seus artigos e resenhas, além de inúmeros contos selecionados por ele. Visitem, e comentem.

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novembro 12, 2006

Motorista com dor de cabeça

Noite. Motorista do ônibus 433 segue do Leblon em direção a Vila Isabel. Passa por Ipanema, Copacabana.
A viagem corre tranqüila, normal, segundo os quase 50 passageiros.
Em frente ao shopping Rio Sul, o ônibus pára. O motorista pede ao fiscal para não prosseguir viagem. Alega muita dor de cabeça. Dor na cabeça.Não no pé, nem na mão, nas costas, na bunda que mantém sentada no banco. A dor é na cabeça.
Mas o fiscal manda que ele siga viagem.
Transtornado, ele dá a partida e sai atropelando os carros que estão à sua frente. Só pára 300 metros adiante, na esquina da Avenida Pasteur. Desce do ônibus e joga o extintor de incêndio nas costas de um guarda.
Está enfurecido, dá trabalho, mas finalmente é imobilizado.
Ele alega que a culpa é do fiscal, que não o deixou abandonar a viagem. Muita dor de cabeça.
Para ele, o fiscal não pegou o Espírito da Coisa.
A multidão tenta linchá-lo, mas é impedida.
Ele é levado a um hospital e depois liberado, pois não houve vítimas, apenas danos materiais.
Não houve vítimas. Segundo um sargento da PM não houve vítimas.
Liberado, o motorista não precisou seguir viagem.

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Relato

Primeiro, a necessidade de um salto rápido, quase um bote, depois da corrida louca, para detê-lo pela camisa, puxá-lo; depois, foi como um impulso, seta do desejo: a mão num soco, fechada como a frente de um Scania, bem no fígado, puf, seco, e, então, o outro se curva, quase uma cadeira, a boca, de dentes podres, abre-se, a língua tremendo num grito pavoroso, os olhos arregalados amarelecendo no rosto negro.
Em direção aos dois, uma pessoa atravessa a rua, uma pessoa quase gato, tão ágil ela. Outras, outro lado da rua, olham apenas; isso, é fácil prever, é por enquanto.
O ódio continua surdo, e ele, agora, aplica, mãos espalmadas, plaft, um telefone-sem-fio no outro; o menino cai, mãozinhas no ouvido, um milhão de abelhas na cabeça zumbindo, lágrimas dos olhos escorrendo, quase um feto no chão, retorcido. O homem chuta a cara do menino, cract; sangue e alguns dentes que, podres, quebraram tão fácil, saltam pela boca, quase de velho agora: murcha.
Outras pessoas cercam os dois, olham: espanto. Sobre suas cabeças: prédios e um céu azul, daqueles de se dizer diáfano, transparente, translúcido. Alguns comentam que eram dois os pivetes, e do morro do Pavãozinho, na certa, ou de muito longe, da Baixada, se tudo é incerto; mas dois, que um fugiu, "menorzinho ainda e já ladrão, deve estar por aí"; certo é que eram dois, pretendiam a bolsa de uma senhora, mas ela protestou, gritou, o homem viu, e o resto é o que estamos, impassíveis, presenciando.
O homem pega a impressão de feto pelas pernas, segura-as bem, e, por elas, levanta-a. O menino de cabeça para baixo, o que o homem pretende?
Um rapaz puxa a namorada, vamos embora daqui, ele diz, já vi esse filme. Ela pergunta qual o filme. Os dois afastam-se do grupo, que, de ciranda em ciranda, aumenta; afastam-se mais, atravessam a rua e, pouco adiante, a menina saltando no ombro do namorado, param - com certeza, o filme ele contou a ela.
O homem, zum-zum, começa, mãos nos pés do menino, a girá-lo. Tão forte é o homem, o menino parece uma ausência súbita, sombra apenas, que roda por cima da cabeça do homem. Este começa a caminhar, ainda zum-zum, e o grupo abre, o grupo num burburinho, dando passagem ao homem-helicóptero, uma pergunta animando a cabeça de todos: o que pretende?
Como o Átila do filme de Bertolucci, 1900, o homem, ainda, e sempre, girando o menino, bate, prac, com a cabeça dele num poste, onde, numa placa, lê-se ATENÇÃO ESCOLA DEVAGAR; e, prac, girando, bate outra vez, sangue e miolos espirrando - não em ninguém, que todos estão afastados, apenas olhando - prac, e prac, e prac. O homem, assim, cansa-se, ufa, e solta o ex-menino no chão de sempre.
O grupo, cirandando, renova-se, uns que vão, são outros que vêm: a cara de espanto quando vêem o ex-corpo; então, conversa de olhos curiosos, pequenas exclamações, dúvidas, ais.
A cinco quarteirões dali, o menorzinho, que conseguiu fugir, limpa, na camisa suja, uma pêra, lindo vê-la, apanhada pouquinho atrás num vacilo do comércio, e morde-a, uma delícia sob o céu azul, tantos prédios. Depois, o menino anda, um pé na frente do outro, sempre trocando, um e outro, assim, um pé na frente do outro. Um na frente do outro.

(Este pequeno Relato faz parte de meu livro de contos A Metáfora de Drácula, lançado pela Livraria José Olympio Editora, em 1982. O livro está esgotado e publicarei outros contos por aqui)


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