A enfermeira falou Não pode comer nada. Nem o café da manhã? O café pode. Mas, depois, nada.
E assim estava Ciça. Só o café da manhã e um frio doido no estômago. Três horas da tarde e a gente indo ao médico fazer o aborto.
Chegando lá, os dois nervosos, a porta abrindo faz blim-blim. Entramos. Na sala, umas cinco mulheres, só uma com o namorado. A recepcionista pergunta o nome. Ciça diz Maria Cecília.
A recepcionista diz Pode aguardar um momentinho, o doutor já vai atender.
Uma tremenda tensão. Eu e Ciça nos sentamos. Parece haver um pacto no ar: ninguém se olha. Observo que nenhuma daquelas mulheres ali tem cara de mãe. Mesmo as que acompanham. Parecem tias. Amigas da mãe, que fazem um favor e acompanham a ex-futura-mamãe, ou melhor, a futura ex-mamãe.
Pra distrair, a sala tem várias cumbucas de cristal, todas cheinhas até a boca de bombons. Penso em encher a bolsa de Ciça com eles (ela adora chocolates). Mas acho melhor não. Não quero sair com nada dali.
Ciça me abraça com força. O coração da gente cabe numa casca de arroz. No entanto, como todas as outras pessoas ali (menos a recepcionista a todo instante no telefone) não falamos nada.
A enfermeira chamou Solange. E uma menina se levantou. Devia ter quinze. Talvez dezesseis, como Ciça. Ela estava sozinha, se levantou e foi com a enfermeira por uma outra porta.
A porta de entrada fez blim-blim e entrou uma nova menina na sala. Os olhos dela muito vermelhos, de quem havia chorado muito. O namorado, ao lado, segurava os ombros dela como se fossem bolhas de sabão. Pela cara, ela devia ter quinze anos, no máximo.
E logo chegou mais gente. E mais gente se foi. De vez em quando alguém chorava. Mas baixo. Como eu disse, havia um pacto.
Pensei comigo Se aqui, no Leblon, zona sul do Rio, consultório particular, o clima é esse...
A enfermeira falou Maria Cecília. A mão dela apertou a minha, com força.
Nós entramos.
A enfermeira falou Por aqui, apontando uma porta no fundo do corredor.
E chegamos ao consultório. O médico, sentado, sorriu.
Pensei que fosse fazer propaganda do escudo invisível de Signal. Ou do novo Omo que deixa o branco ainda mais branco. Quase.
Só delicadezas, mandou que a gente se sentasse, ficasse à vontade. Como se isso fosse possível.
Olhei a cara dele.
Então ele falou que a gente não devia se preocupar, que o método dele era eficientíssimo.
Manjei a pinta. Se não fosse médico, vendia carnê do Baú do Sílvio Santos.
E fez a comparação. Existe o método moderno (o dele) e o da raspagem (dos outros), "antigo e ultrapassado". A raspagem, ainda segundo ele, era um método perigoso, podia haver perfuração do útero - e Ciça ouvindo aquilo tudo, mordendo os lábios.
A diferença entre o método dele e o da raspagem ele explicou assim: é a mesma que existe entre se tirar a sujeira do tapete com uma vassoura ou um aspirador de pó.
Tive vontade de dizer que a diferença não estava no aspirador nem na vassoura, mas naquilo que ele chamava de sujeira. Falei só que o que eu queria era que tudo corresse bem.
Ele disse pra eu ficar calmo e pra Ciça ir ao banheiro - que ele apontou com a mão branca, de dedos curtos - pra ela ir ao banheiro, tirar toda a roupa e pôr o camisolão branco que estava lá.
Ciça saiu, um beijinho rápido em mim, e a mão molhadinha de suor - ela que tinha medo até de dentista.
Olhei pra cara do médico e ele disse Não se preocupe, não demora. E saiu.
A sala dele era fria, um ar condicionado forte.
Fiquei ali naquele silêncio, um tempo que parecia interminável.
Até que a enfermeira, que até aquele momento havia sido absolutamente gentil e tranqüila, surgiu, nervosíssima, falando Já acabou, venha comigo, ela está lá fora.
Sigo nervoso, em direção à porta que ela me aponta. No corredor do prédio vejo minha Ciça, encostada na parede, meio curvada, chorando desesperadamente, resmungando Nosso neném, Nosso neném! Eu a abraço.
A enfermeira diz Tem que fazer ela parar de chorar e gritar assim, isso aqui é um prédio! E fecha a porta.
Ficamos nós dois no corredor. A enfermeira quer silêncio. Penso no médico, em seu método moderno para eliminar sujeira de tapete. E percebo que, agora, o que esperam de nós é que tenhamos bom senso, não toquemos no assunto. Devemos fazer silêncio e varrer a sujeira pra baixo do tapete.
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novembro 22, 2006
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